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Advogada, Pós graduada em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Nove de Julho.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A USUCAPIÃO FAMILIAR E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO DIREITO DE FAMÍLIA.

Autora: Cláudia Regina Fernandes da Silva, Bacharel em Direito formada pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE, Pós-graduanda em Direito de Família pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE.


Resumo: Este artigo aborda breves questionamentos sobre a nova modalidade da Usucapião, prevista no artigo 1240-A do Código Civil de 2002, no que tange a algumas implicações no Direito de Família, quando do término da vida conjugal, onde uma das principais conseqüências se dará na partilha de bens, atrelada ao divórcio ou ao rompimento da união estável.

Traz-se à baila reflexos sobre as dissoluções familiares tecendo novamente a questão da culpa e conseqüentemente do abandono, vez que tais argumentos foram encerrados pela EC 66/10, que trata de terminar com condição de culpa nas demandas conjugais, e, com aplicação dessa norma, levanta-se novamente o temor pela imputação moral no fim do relacionamento.

Analisa-se também o princípio da igualdade, que pode gerar desproporção patrimonial entre os ex-cônjuges, bem como o abalo na segurança jurídica, pois com a garantia dada ao consorte que se mantiver no imóvel, respeitando os requisitos necessários do artigo em pauta, o regime de bens perde sua credibilidade, entre outros aspectos importantes.

Palavras-chaves: Usucapião familiar. Culpa. Abandono. Princípio da igualdade. Segurança jurídica. Consorte.

Abstract: This brief article addresses questions about the new way of adverse possession under Article 1240-AThe Civil Code of 2002, with respect to some implications in family law at the termination of marriage, where one of the main consequences will be in the division of assets, linked to the divorce or the breakup of the stable.

Brings to the fore reflections on family breakups weaving again the question of guilt and therefore the abandonment, since such arguments were closed by EC 66/10, which comes to end with a condition of guilt on the demands of marriage, and application of this rule raises again the fear by attributing moral at the end of the relationship.

Evaluate also the principle of equality, which can generate disproportionate assets between former spouses, and weakening the legal certainty as to the assurance the spouse who remains in the property, subject to the requirements of the article in question, the property regime loses its credibility, among other important aspects.

 
Key-words: Family Adverse Possession. Guilt. Abandonment. Principle of equality. Legal certainty. Consort.


SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Algumas considerações sobre o artigo 1.240-A do Código Civil – 3. Do prazo – 4. O abandono do lar e a culpa – 5. Função social da posse na usucapião familiar - 6. Princípio da igualdade e da segurança jurídica – 7. Considerações finais

1. Introdução

A recente Lei 12.424/2011 que está em vigor desde 16/06/2011, trouxe com ela o acréscimo de um novo artigo no Código Civil, o 1.240-A, que trata da nova modalidade de Usucapião, que embora tenha liame com o Direito Real, vai interferir diretamente no Direito de Família, vez que dá ao cônjuge que não “abandonou” o lar, após passado o prazo de dois anos, o direito de meação em face do ex-cônjuge ou do ex-companheiro, por Usucapião, podendo-se dizer que, nesse caso, o regime de bens não fará diferença alguma, sendo totalmente desprezado, implicando na partilha de bens quando da dissolução do matrimônio e, em outro instante, no caso de herança.


Embora já prevista em lei a possibilidade de Usucapião por um dos condôminos, neste novo modelo exige-se, além dos pressupostos já existentes, que, aquele que almeja usucapir o imóvel seja co-proprietário em conjunto com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro, adquirindo assim, a parte pertencente ao que tenha “abandonado” o lar, dando-lhe o direito de se tornar o proprietário exclusivo do bem. Nota-se também que o prazo, neste caso, é bem menor que as demais espécies de Usucapião existentes no Código Civil, pois, ficando no imóvel por um período de dois anos ininterruptos, confere-lhe o direito a fração da propriedade que pertencia ao ex-cônjuge ou ex-companheiro.


Ressalta-se, também, a questão das palavras utilizadas no texto do artigo “abandono do lar”, onde se entende que aquele que “abandonou” é o culpado pela dissolução matrimonial, fazendo ressurgir a questão da imputação moral pelo fim do relacionamento. Salienta-se ainda que, em virtude da aplicação dessa norma, estaria ferido o Princípio da Igualdade, conforme artigo 5º, I, e artigo 226, §5º da Constituição Federal, já que um dos consortes, em detrimento do outro, estaria sendo mais beneficiado, gerando a desigualdade patrimonial entre ambos.


No que tange à segurança jurídica, a confiança no pacto antenupcial e no regime de bens deixa de existir, vez que aplicando a referida norma, os consortes apressarão a partilha dos bens com receio de perderem patrimônio, e, não obstante, encurtarão o prazo de reflexão necessário entre a separação fática e a judicial, causando a antecipação dos atos, e distanciamento de uma possível reconciliação.


Observa-se que vai muito além do que previa o espírito do legislador, pois entende-se que, ao invés de simplificar algumas situações, como por exemplo, o domínio do imóvel pelo consorte que foi “abandonado”, criará um impasse, como dito anteriormente, no que tange a partilha de bens, ou ainda, estará penalizando um dos consortes com a perda da propriedade em virtude da suposta “culpa”.


Objetiva-se, portanto, salientar que tais impressões aqui aventadas, sirvam para reflexão, contudo, é certo que não serão as únicas a trazerem questionamentos e incertezas, pois, embora aparentemente a intenção do legislador tenha sido de garantir moradia ao cônjuge desamparado, conforme aduzido anteriormente, o texto dá margem a discussões polêmicas e, por tratar-se de um novo instituto, nota-se que outros debates e decisões serão proferidos sobre o tema, até que se chegue a um nobre consenso.


2. Algumas considerações sobre o artigo 1.240-A do Código Civil


Em 16/06/2011 entrou em vigor a Lei 12.424/11, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas , acrescentando no Código Civil o art. 1.240-A, o qual aborda uma nova modalidade de usucapião no Código Civil. Essa nova modalidade, segundo o professor Flávio Tartuce, pode ser denominada como usucapião especial urbana por abandono do lar , visando diferenciar as categorias de usucapião encontradas no ordenamento brasileiro.

Abaixo segue o artigo na íntegra para melhor entendimento:


Artigo 1.240-A: "Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 2º (VETADO)”.


A princípio, o que percebe-se com a edição desta nova norma que traz outra modalidade de usucapião, é a intenção de permitir que o ex-cônjuge ou ex-companheiro, possa, ao final de um relacionamento conjugal, opor contra o outro “a pretensão de usucapir a parte que lhe pertence. (...) o ex-cônjuge ou ex-companheiro que continue a habitar o imóvel abandonado (...) passará a titularizar a integralidade da propriedade, outrora mantida em regime de condomínio, entre o casal.” , conforme esclarece o artigo 1.314 do Código Civil.


Artigo 1.314: “Cada Condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.”


Cumpre informar que, essa nova modalidade de usucapião, tem pressupostos em comum com a usucapião especial urbana, artigo 1.240 do Código Civil; Em ambos os casos é imperativo que um dos consortes exerça a posse mansa, pacífica e ininterrupta sobre imóvel, este deverá ter no máximo 250 metros quadrados, onde sua função será de moradia própria ou de sua família, bem como, quem ficar no imóvel não deverá ser proprietário de outro, urbano ou rural. Não será permitida a concessão desta medida mais de uma vez, em ambas as hipóteses.

Contudo, há diferenças entre os institutos. Além do que já é previsto em lei, exige-se que aquele que tenha a intenção de usucapir o imóvel, seja co-proprietário com o ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como, o prazo estipulado neste dispositivo é de dois anos de permanência ininterrupta na propriedade, sendo este inferior às demais espécies de usucapião no Código Civil, para que assim possa adquirir a meação que pertencia ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, que tenha “abandonado” o lar.

Não é novidade que a possibilidade da usucapião por um dos condôminos é prevista no Direito Real e sempre pôde ser utilizada após a separação, entretanto, o novo instituto inovou fazendo com que os requisitos atrelem-se ao fim do casamento para aquisição da propriedade, porém, oportuno salientar que, mediante a limitação da metragem do imóvel (250 m2), a qual é indicada no dispositivo atual, os casais que possuem melhores condições financeiras, mais de um imóvel, ou a residência maior que os 250m2 previstos, continuarão se valendo dos dispositivos anteriores, com prazos de 5 e 10 anos, conforme artigos 1.240 e o parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil.

Cabe recordar que o prazo estipulado no novo artigo, 1.240-A, do mesmo diploma, é bem reduzido em relação aos prazos das demais categorias de usucapião; "Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente (...) adquirir-lhe-á o domínio integral (...)”, observando que, embora possa ser visto como benefício ao consorte “abandonado”, este pode trazer algumas seqüelas indesejadas ao Direito de Família, porém tal assunto será abordado mais adiante.

3. Do prazo

Segundo o que traz a norma, a contagem do prazo para a propositura da ação de usucapião contra o ex-cônjuge ou ex-companheiro, é de dois anos ininterruptos, portanto, se entende que, mesmo que haja casais que tenham seus matrimônios desfeitos há mais de dois anos, não poderão se utilizar dessa premissa para invocar seu direito, devendo começar a contagem do prazo a partir da data que começou a vigorar a norma, ou seja, 16/06/2011.

Critica-se, também, o prazo por ser muito curto, dois anos, pois levará os casais a deixarem de lado, forçosamente, o tempo que teriam para reflexão, reestruturação e projetos familiares, para enveredar-se na formalização do divórcio, com o intuito de partilharem os bens e não perderem patrimônio.

Há que se considerar outro aspecto importante, pois, ao analisar o tema verifica-se que existe uma dupla interpretação quanto à aplicação do prazo.

Uma das hipóteses é a de que a contagem do prazo não pode ser consentida antes que o divórcio seja consumado ou da dissolução da união estável, portanto, se um casal, embora separados de fato por mais de dois anos, estiverem legalmente casados, não será plausível a usucapião, vez que não é possível qualificar as partes como ex-cônjuges ou ex-companheiros. Não menos importante, esta interpretação aparentemente correta, demonstra que seria um entrave nos processos judiciais de divórcio litigioso, pois, conforme explica o professor A. M. Godinho, “(...) Caberia, pois, em primeiro lugar, decretar o divórcio e colocar fim ao casamento, para se atribuir aos outrora casados a condição de ex-cônjuges, permitindo-se a discussão sobre a usucapião.(...).” Contudo, é necessário lembrar que, se o casal estiver divorciado, o bem ora discutido, já foi formalmente partilhado, deixando assim de fazer sentido a concessão da nova espécie de usucapião.

Por outro lado, tem-se a interpretação demonstrada pelo professor Amorim, de que “o início da contagem sempre se dá após o abandono do lar por um dos consortes, precedida ou coincidente com o fim do relacionamento afetivo” , portanto, faz-se entender que é possível contar o prazo logo após o “abandono”, e usucapir o imóvel, mesmo sem o divórcio ter sido concluído. Dessa forma, resta consequentemente a dúvida quanto à maneira correta para aplicação do prazo.

Pondera-se também a questão da prescrição, que não corre para cônjuges, artigos 197, I; “Não corre a prescrição; I – entre cônjuges na constância da sociedade conjugal”; e 1.244 do Código Civil, deste modo, por não haver a possibilidade da contagem de prazo da usucapião, enquanto a sociedade conjugal não estiver desfeita, entende-se que tal dispositivo só terá valia após o divórcio.

Artigo 1.244: “Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”.


Por derradeiro, no que concerne a evitar o cômputo do prazo, o professor Flávio Tartuce, esclarece que, se o cônjuge que “abandonou” o lar notificar anualmente o ex-consorte, com o intuito de demonstrar que tem interesse na propriedade, não será realizada a contagem do prazo .


Tal notificação pode ser judicial – medida cautelar de separação de corpos - ou mesmo de um instrumento extrajudicial, até mesmo de caráter particular .


4. O abandono do lar e a culpa


A princípio, o novo artigo pode ser visto como algo bom, vez que não deixa desamparado o consorte ou companheiro que foi “abandonado”, adquirindo assim a fração da propriedade que seria daquele que o “abandonou”. Contudo, tal dispositivo merece ser visto com ressalvas.


No que tange ao abandono do lar, cabe ressaltar que, no caso em tela, é a chave mestra para a aquisição da meação do cônjuge que cometeu o ato supracitado.

Segundo o artigo 1.573, IV do Código Civil, designa-se o abandono, também, como uma das causas que inviabiliza a convivência do casal.


Artigo 1.573: “Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;”


Importante esclarecer que, o abandono ao qual se refere o dispositivo, deve ser voluntário, caracterizando infração nos deveres conjugais ou da união estável, portanto, embora não esteja expressamente previsto, supõe-se, por extensão, que o abandono que justifica a pretensão de usucapião em comento, citado no artigo 1.240-A do Código Civil, deverá ser voluntário e injustificado; “(...) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral (...)”.

Há, contudo, a interpretação do abandono do lar como alusão à culpa pela dissolução do relacionamento matrimonial.

Após anos de críticas, a culpa foi extinta dos litígios familiares, por meio da Emenda Constitucional 66/10, que deu nova redação ao § 6º do art. 226 do Constituição Federal; “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, trazendo como interpretação que “a única ação dissolutória do casamento é o divórcio que não mais exige a indicação da causa de pedir. Eventuais controvérsias referentes a causa, culpa ou prazos deixam de integrar o objeto da demanda”, conforme mostra Maria Berenice Dias .

Boa parte da doutrina não aceita mais o indicativo de culpa no direito de família, inclusive quanto aos reflexos patrimoniais.

“Obviamente que, com o fim do instituto da separação, desaparecem também tais causas objetivas e subjetivas para a dissolução da sociedade conjugal.” (p. 94) “Expendidas todas essas importantes considerações retornamos à nossa premissa: em caso de separação judicial (possível antes da Emenda) ou de divórcio, a dissolução do patrimônio conjugal dar-se-á segundo as regras do regime de bens aplicável, independentemente de quem haja sido a “culpa” do fim do casamento. (p. 119).“


No entanto, algo ainda perturba neste quesito, pois, juridicamente não se exclui mais os direitos do consorte com causa na culpa, mas agora, com a inserção do artigo 1.240-A no ordenamento brasileiro, possivelmente, voltará o julgamento pela imputação moral para decisão do direito material. É preocupante, pois se trata de um retrocesso jurídico.

Outro ponto importante, trata-se da extensão do litígio conjugal, vez que novamente será buscada a culpa pelo fim do relacionamento, com o intuito da aquisição integral da propriedade, acirrando as contendas entre os cônjuges e companheiros, sendo que o novo dispositivo supõe o abandono por um dos consortes e este deverá ser provado por quem ficar no imóvel, tornando essas batalhas judiciais mais turbulentas. É certo que as partes ficarão numa situação de degradação moral, vez que, com o medo de perder a propriedade, se submeterão a ferir sua liberdade e intimidade, não saindo do lar após o término do casamento.

Mas há algo preocupante na interpretação das palavras “culpa” e “abandono”, pois, se pensar que uma mulher é agredida e acaba por “abandonar” seu lar para deixar de sofrer a violência, não existe “culpa” em sua atitude, a qual se deu por motivo de segurança à sua integridade física. Passados os dois anos sem impugnar sobre a posse, caberia ao agressor que ficou no imóvel, a propriedade, afastando assim, o direito de meação da violentada.

Da mesma forma, o casal que decide que não há mais amor no relacionamento, e um deles deixa honrosamente o lar conjugal por respeito à dignidade, liberdade, e intimidade de ambos, não havendo mais motivos para compartilharem suas vidas, embora não se tenha por justa a solução, passado o prazo de dois anos de posse, sem que aquele que deixou o lar por espontânea vontade, não fizer nenhuma notificação ou questionamento, este perderá a propriedade.

Nota-se que são dois casos hipotéticos, porém comuns, daí a importância de avaliar a questão do abandono e consequentemente da culpa, que atualmente não é mais agasalhada pelo direito de família.

Por último, levanta-se uma questão acerca de qual significado do “abandono de lar”, se este é o citado no artigo 1.573, IV do Código Civil, ou se simplesmente foi criado para dar efeito ao Direito real, no que tange a nova espécie da usucapião. Para o professor Amorim, a questão do abandono de lar deve ser analisada “sobre a vertente da função social da posse e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal”

Ou seja, deve-se analisar o abandono sobre o prisma de quem permaneceu no imóvel dando destinação residencial e, não quanto a moralidade da culpa, se abandonar foi necessário ou urgente, independente se o consorte que ficou no lar tem legitimidade da posse. Sendo assim, permite-se ultimar que não há nada em comum entre o abandono de lar para fins da usucapião com o da culpa pelo fim do relacionamento conjugal.

Imagina-se, portanto, que o “abandono do lar” ora ensejado pelo legislador, significa que o consorte que saiu do imóvel, não deu mais a destinação social adequada à propriedade, ou ainda, deixou de morar no local. Entende-se que o fundamento dessa questão é sobre a função social da posse.

Destarte, traz-se a baila novamente que, se pensado diferentemente do que foi exposto acima, trará perigosamente a possibilidade de ressurgir a temida imputação moral da culpa pelo fim do relacionamento e dissolução da união estável, tornando os litígios mais doloridos para os litigantes.

5. Função social da posse na usucapião familiar

Na Constituição Federal, o direito de propriedade foi garantido por intermédio do artigo 5º, incisos XXII e XXIII, o qual estabeleceu-se que "a propriedade atenderá sua função social". Essas informações foram levadas à qualidade de princípios gerais da atividade econômica, através do artigo 170, III, direito de propriedade e sua função social, conforme segue abaixo:

Artigo 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

III - função social da propriedade;”


Tem-se ainda, como definição de função social, o que está expresso no artigo 182, parágrafo 2º da Carta magna; “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor", bem como, no que concerne a função social da propriedade rural, que esta previsto no artigo 186 e incisos:

Artigo 186: "A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores".


Entende-se ainda que a função social da posse veio satisfazer uma necessidade social e econômica, bem como, pode-se dizer que atende ao princípio da dignidade da pessoa humana. Marizélia Peglow da Rosa, em seu artigo, esclarece que “Os motivos pelo qual a posse é exercida estão fundamentados na posse trabalho e na posse moradia, pois é nestas ramificações da posse que vislumbramos melhor a função social da posse. A posse possui como valores sociais a vida, a saúde, a moradia, igualdade e justiça.”

Adentrando na questão da nova forma de usucapião, examina-se que a Lei 12.424/11 dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, visando o direito social de moradia, enfatizando o artigo 6º da Constituição Federal.

Artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”


Fica claro na redação do artigo 1.240-A, que a utilização desta nova modalidade de usucapião é para os menos abastados, ou seja, a parcela de menor renda na sociedade brasileira, pois o objeto da usucapião, a qual se refere o artigo, deverá ser de no máximo 250m2 e o pretendente não poderá ter nenhum outro imóvel; “(...) sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) (...), adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Ademais, como já abordado em capítulo anterior, o abandono do lar, pode ser analisado como alguém que deixou de dar a função social ao imóvel, evadindo-se, deixando nas mãos de outrem, que neste caso é o outro consorte que ficou no lar, para que dê a destinação social.

Por fim, nota-se que, por intermédio da norma, cria-se certa segurança para quem fixou a residência no imóvel, porquanto no momento da partilha, não lhe será tirado o patrimônio e nem amealhado. Por outro lado, apenas um terá o imóvel, enquanto o outro não terá nada, ferindo assim, o princípio da igualdade.

6. Princípio da igualdade e da segurança jurídica

O princípio da igualdade faz parte dos direitos e garantias fundamentais cravadas na Constituição Federal, elencado no caput do artigo 5º, "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, (...)".

A igualdade do ser humano prevista na Constituição Federal, deve ser vista sob dois prismas, quais sejam: Igualdade material e Igualdade formal.

Entende-se por igualdade material as possibilidades que devem ser dadas a todos os seres humanos, de forma isonômica, homogênea. As oportunidades e chances devem ser permitidas de forma igual aos cidadãos, e ainda busca sua equiparação sob todos os aspectos, inclusive o jurídico, podendo-se afirmar: “Todos os homens, no que diz respeito ao gozo e fruição de direitos, assim como à sujeição a deveres".

Quanto a igualdade formal, abrange o que está previsto nos textos legais no que concerne a direitos e deveres; “igualdade de todos perante a lei”, artigo 5º Caput. Tal princípio protege o “homem”, permitindo que não haja a concessão de vantagens a alguns e a outros não.

Está ligado o princípio da igualdade com a Dignidade da pessoa humana, vez que se deve haver a garantia da isonomia de todos os seres humanos, e não devem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, de acordo com o professor Ingo Wolfgang Sarlet, citado pelo professor Marcelo Amaral:

“o princípio da igualdade encontra-se diretamente ancorado na dignidade da pessoa humana, não sendo por outro motivo que a Declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, perseguições por motivo de religião, sexo, enfim, toda e qualquer ofensa ao princípio isonômico na sua dupla dimensão formal e material".

Em que pese imagina-se que a intenção do legislador tenha sido de assegurar ao ex-cônjuge ou ex- companheiro, que foi “abandonado”, a posse integral do imóvel habitado com a família, por meio da nova modalidade da usucapião, é evidente que o princípio da igualdade foi ferido, pois, não obstante, demonstra-se que tal dispositivo será utilizado apenas por pessoas que não têm condições financeiras privilegiadas e, acaba por deixar o outro consorte em uma situação de prejuízo, sem nada. Enquanto estes eram casados, tinham apenas um imóvel, que pelo regime de bens, deveria ser dividido entre os cônjuges, mas que não será, em virtude da nova norma, concentrando o bem apenas nas mãos de um.

Ainda, questiona-se se a perda da cota parte do imóvel, não é uma punição a quem “abandonou o lar”, mesmo sabendo que este é igualmente possuidor do direito fundamental à moradia?

Outro fator importante a ser abordado, é o princípio da segurança jurídica, que tem como objetivo, fazer com que a justiça, prioridade maior do Direito, se efetive, outorgando aos indivíduos a segurança necessária para o incremento de suas relações sociais. Faz com que a pessoa se sinta protegida contra mudanças numa realidade jurídica.

No caso em tela, este princípio também é ferido, pois, tendo em vista que no casamento há a segurança do regime de bens, após a aplicação da norma em pauta, o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, se verá desprotegido e desamparado pelo direito, pois, não haverá mais a garantia da partilha dos bens no rompimento do casamento, mas sim, a desigualdade patrimonial entre os ex-cônjuges. A segurança jurídica perderá sua eficácia, e o pacto antenupcial será desacreditado.

7. Considerações finais

O presente artigo teve como intuito trazer a baila questões inerentes a nova modalidade da usucapião, disposta no artigo 1.240-A do Código Civil, inserido pela lei 12.424/11 que entrou em vigor no dia 16/06/2011, demonstrando o quanto incide diretamente no direito de família.

Como pode-se observar, o referido instituto traz consigo algumas peculiaridades, e uma delas esta no prazo, sendo este mínimo, apenas dois anos, para que o pretendente que esteja na posse do imóvel, possa adquirir por meio da usucapião familiar, a propriedade integral do bem., contudo demonstra-se que o prazo é curto e forçará o casal a tomar decisões antecipadas, impensadas, quiçá indesejadas, pois na ânsia de resolverem o conflito relativo à propriedade, adotarão a iniciativa de se divorciarem para partilharem o bem.

Surge a dúvida quanto a interpretação da aplicação do prazo, que dispõe sobre o termo ex-cônjuges e ex-companheiros, pois só o serão se estiverem legalmente divorciados, porém se assim ocorrer, a partilha de bens já terá sido efetuada, não fazendo mais sentido a concessão da usucapião e, ainda, por outro lado, tem-se por interpretação que o prazo poderá ser contado a partir do abandono do lar. Criou-se um impasse quanto a qual interpretação deverá ser utilizada.

É de se preocupar com relação ao termo usado pelo legislador no que confere ao “abandono do lar”, pois fará ressurgir a culpa pelo fim do relacionamento, fazendo com que os litígios se tornem mais dolorosos, sendo que esse conceito foi abolido pela da EC 66/10. Nesse caso, salienta-se ainda, que, nem sempre quem abandonou o lar deu motivo para o rompimento do relacionamento, portanto, restará aí uma situação delicada, pois, será contemplado com a nova usucapião, muitas vezes, o agressor que permaneceu no imóvel dando a destinação social, num caso hipotético.

Por outro lado, fere-se o princípio da igualdade e da segurança jurídica, dando a um dos consortes o bem que outrora fora dos dois, fazendo com que surja a desigualdade patrimonial, e, não obstante, a garantia e segurança que se tinha no regime de bens, perde-se com essa modalidade.

Demonstra-se, portanto, que, embora o interesse do legislador tenha sido de criar uma garantia para quem permanecesse e desse a destinação social correta ao imóvel, existem algumas falhas na redação da referida norma, as quais deram margem a várias dúvidas, e ainda, muitas implicações que podem ocorrer se não houver uma avaliação adequada quanto a sua aplicação.

Para finalizar, espera-se ter aventado algumas questões acerca da nova modalidade de usucapião, que, embora seja uma interessante inovação, sabe-se que haverá, certamente, outras dúvidas na medida em que juristas passarem a utilizá-lo. Surgirão opiniões mais coerentes da doutrina, pronunciamentos jurisprudências, opiniões de professores e profissionais do direito, para que possam ajudar a solucionar alguns destes problemas e, formar um juízo de valor mais correto.

Referências

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AMORIM. Ricardo Henrique Pereira. IBDFAM. Primeiras impressões sobre a Usucapião Especial Familiar Urbana e suas Implicações no Direito de Família. Disponível em:

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